Salgueirenses

Maria Lalande

Maria Adelaide da Silva Lalande (Salgueiro do Campo7 de Novembro de 1913 - São Domingos de BenficaLisboa21 de Março de 1968) foi uma atriz portuguesa.

Família

Filha do médico José Inocêncio Lalanda de Azevedo (Salgueiro do Campo,  27 de Junho de 1887 - Santa Maria de Belém, Lisboa, 4 de Agosto de 1947) e de sua mulher Virgínia das Dores e Silva Lalande (Vila Franca de Xira, 29 de Junho de 1881 - Sacramento, Lisboa, 7 de Junho de 1934). Neta paterna de Manuel Martins de Azevedo e de Ana Adelaide Lalanda de Azevedo, materna de Joaquim da Silva e Leonor da Assunção Silva. 

O seu pai casaria novamente após a morte da esposa, vítima de doença neurológica, em Agosto de 1935, com Júlia Augusta Gomes (1902-1987), natural de Albufeira, de quem se divorcia em 1944. Decorridos três anos, falece atropelado por um comboio, em Belém.

Alterou oficialmente o seu último nome "Lalanda" para "Lalande", assim como seu pai, que modificou o nome para "José Inocêncio Lalande".

Biografia

Aluna distinta do Conservatório Nacional, onde frequentou os cursos de Arte de Representar e Dança. Concluído o Conservatório em Teatro e Dança logo se estreou no Teatro da Trindade, em A Cova da Piedade, ao lado de Adelina Abranches, no ano de 1928. Maria Lalande integra a companhia Amélia Rey-Colaço-Robles Monteiro onde permanecerá longos anos.

Devido à sua aparência, encarna a figura da ingénua dramática desta companhia. Participa em Romance de Sheldon, Carochinha de Schwalbach, Frei Luís de Sousa entre outros, revelando grande talento para esta área artística, sendo A Ascensão de Joaninha (1944) de Gerhart Hauptmann o seu maior êxito. Após esta peça, Maria Lalande recusa um convite de Hauptmann para ir para a Alemanha. Nesse mesmo ano António Lopes Ribeiro e o seu irmão Ribeirinho (de quem teria uma filha, Maria Manuela Lalande Lopes Ribeiro), tomam o Teatro da Trindade e fundam "Os Comediantes de Lisboa" levando a cena um reportório cheio de novidades e de grande qualidade. Maria Lalande, tal como muitos outros grandes actores, junta-se a esta nova companhia. Aí representa PigmaleãoMiss Bá e Bâton, entre outros. 

A companhia finda e Lalande não volta ao D. Maria, optando por percorrer outros teatros (Variedades e o Maria Vitória, por exemplo). É aí que, entre 1952 e 1953 representa A Hipócrita, de Emlyn Williams e O milagre da rua, de Costa Ferreira.

O ano de 1955 é marcado pela sua presença no Teatro d’Arte de Lisboa, destacando-se em A casa dos vivos e Yerma, após o que fica sem trabalhar durante uns anos. Em 1965, a propósito das comemorações do centenário de Gil Vicente, é convidada para fazer o Auto da Alma no Teatro de S. Carlos e com encenação de Almada Negreiros.

No ano seguinte integra com outros actores a Companhia Portuguesa de Comediantes, no teatro Villaret, fazendo-se notar em As raposas de Lillian Hellman e Verão e fumo de Tennessee Williams. Por fim, no Teatro S. Luiz, representa, apesar de já estar doente, a Bernarda de António Marinheiro – peça de Bernardo Santareno e com a qual se despede dos palcos.

Teve assinalável desempenho nas peças Casa das Bonecas de Henrik Ibsen, A Dama das Camélias de Alexandre Dumas, Pigmalião de Bernard Shaw, Electra e os Fantasmas de Eugene O'Neill, O Caso do Dia de Tennessee Williams, Jangada de Bernardo Santareno, entre outras.

No cinema participou em Lisboa, Crónica Anedótica (1930, de José Leitão de Barros), Campinos do Ribatejo (1932, de António Lopes Ribeiro), A Rosa do Adro (1938, de Chianca de Garcia), Fátima Terra de Fé (1943, de Jorge Brum do Canto) e Não há rapazes maus (1948, de Jorge García Maroto e João Mendes).

De Clotário Luís Supico Ribeiro Pinto teve outra filha, Isabel Maria Supico Pinto (Lisboa, 26 de Outubro de 1942), casada civilmente em São Paulo, em 9 de Junho de 1976 com Vasco Maria Vasques da Cunha de Eça da Costa e Almeida, 3.º Visconde de Maiorca, de quem foi segunda mulher, sem geração, e com geração de Francisco Pinto Balsemão.

Maria Lalande nunca casou com nenhum dos seus companheiros, tendo morrido com o estado civil de solteira. Residia na Rua do Salitre, número 185, 3.º andar esquerdo, da freguesia lisboeta de São Mamede. Faleceu em 1968, aos 54 anos, vítima de cancro do estômago, no Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa em São Domingos de Benfica, Lisboa. Foi primeiramente sepultada no Talhão dos Artistas do Cemitério dos Prazeres, sendo depois trasladada para o cemitério da Guia, em Cascais, em 1997.

Prémios e homenagens

O seu nome faz parte da Toponímia de: Almada; Barreiro (Freguesia do Lavradio); Cascais (Freguesia de São Domingos de Rana); Castelo Branco; Lisboa (Freguesia de Benfica, Edital de 31-01-1978, ex-Rua D do Bairro das Pedralvas); Montijo; Seixal (Freguesia de Fernão Ferro) e de Sesimbra.

Foi-lhe atribuído, em 1966, o Prémio Lucília Simões de melhor intérprete feminino de teatro declamado, pelo seu desempenho em As Raposas de Lilian Helmet. 

O escultor Joaquim Correia, esculpiu em 1940 o seu busto.

Teatro 

No teatro interpretou várias personagens, entre elas:[

  • Rosa em A Rosa Enjeitada de D. João da Câmara
  • Elizabeth Barrett em Miss Ba
  • Fanny em Fanny de Marcel Pagnol
  • Eliza em Pigmalião de Bernard Shaw
  • Nacinha em Batôn de Alfredo Cortez
  • Electra em Electra e os Fantasmas
  • Camilo e Fanny de Manuela de Azevedo 
  • Mensageira dos deuses de Giraudoux
  • Margarida Gautier em A dama das camélias de Alexandre Dumas, filho
  • Vendaval de Virgínia Vitorino
  • Maria Rita de Mariana Monteiro

Filmografia

Participou como actriz nos seguintes filmes: 

  • Lisboa, Crónica Anedótica de Leitão de Barros, 1930
  • Campinos do Ribatejo de António Lopes Ribeiro, 1932
  • A Rosa do Adro de Chianca de Garcia, 1938 
  • Fátima Terra de fé de Brum do Canto, 1943
  • Não Há Rapazes Maus de Eduardo Maroto, 1948

Ligações externas

        (Veja a partir dos 14:05 minutos aos 16:37)

(in: https://pt.wikipedia.org/wiki/Maria_Lalande, consultado em 14/12/2022)

 

 

João Camilo dos Santos

Nota Biográfica:

Nasceu a 5 de Junho de 1943 em Salgueiro do Campo.

Estudou nos Seminários de Gavião e de Alcains durante 3 anos. Completados os estudos liceais, foi para Lisboa, onde veio a licenciar-se em Filologia Românica em 1968.

Foi leitor em Oslo de 1969 a 1973, em Rennes em 1973-74 e em Aix-en Provence de 1974 a 1987.

Tendo-se doutorado em França com uma tese sobre Carlos Oliveira, foi responsável pelo Departamento de Estudos Luso-Brasileiros na Universidade Stendhal em Grenoble.

Foi Director do Jorge de Sena Center for Portuguese Studies e Professor de Literatura Portuguesa no Departamento de Espanhol e Português da Universidade de Califórnia em Santa Bárbara.

Autor de vários estudos sobre literatura portuguesa, de entre os quais se destacam Carlos de Oliveira et le Roman (Paris/Lisboa, 1987) e Os Malefícios da Literatura, do Amor e da Civilização (Lisboa, 1992).

Poeta, ficcionista, ensaísta tem colaborado em várias publicações, e revela-se sempre um escritor que cria "com a mesma espontaneidade com que caminha, olha e respira".(Maria da Conceição Vilhena, in Arquipélago, nº 5, Janeiro de 1983, p.294).

 

João Camilo dos Santos conta já com mais de uma dezena de livros publicados. O seu mais recente é Nunca mais se apagam as imagens (Lisboa, 1996).
 

Bibliografia:

·  A Apresentação do Diálogo em três Romances de Camilo Castelo Branco, sep. de Ocidente, 1973

·  Retrato Breve de J.B., 1974

·  Uma Abelha na Chuva (Alguns aspectos da técnica narrativa), sep., dos Arquivos do Centro Cultural Português (Paris), 1976

·  Os Filmes Coloridos, s/d, 1978

·  À Procura da Pureza Original? Uma leitura de Terras do Demo, romance de Aquilino Ribeiro, 1979

·  A Jovem Poesia Portuguesa (com Eduarda Chiote e Wanda Ramos), 1979

·  O T de Tu, 1981

·  Para a Desconhecida, 1983

·  Na Pista entre as Linhas, 1983

·  Augusto Abelaira e Vergílio Ferreira: Plenitudes

·  Breves e Absolutos Aliados, sep. dos Arquivos do Centro Cultural Português, 1963

·  Tendances du Roman Contemporain au Portugal: du Néo-Realisme à l'Actualité, sep. dos Arquivos do Centro Cultural Português, 1986

·  Carlos de Oliveira et le Roman, 1987

·  A Mala dos Marx Brothers

 

Excertos das suas obras:

De novo a vida

Quase quatro da manhã e eu sem dormir.
Devia ir deitar-me. Mas estava
sentado na sala fria a comer pão com marmelada,
pensava ainda em fumar um cigarro.
Vício horrível. Devia ter juízo.
Pai irresponsável de duas crianças que dormiam,
marido monótono de uma rapariga que começara a envelhecer,
caíra de novo no alçapão profundo do sentimento
poético. Havia tanto tempo que eu não tinha escrito.
Tanto tempo que eu não conhecia o prazer de ir
de verso em verso, livremente, e no entanto inquieto,
ao encontro de palavras que me surpreendiam.
Era eu que estava ali, não havia dúvida.
Mas nada do que eu dizia correspondia ao que pensara antes,
vozes alheias pareciam falar pela minha mão.
Bem sei, estava de novo a abrir os olhos para a realidade.
Reencontrara a brecha na rocha da montanha
e ia indo por ela adentro.
E era como se desaguasse inesperadamente
na foz da minha adolescência, no lago de um amor
antigo que tinha vivido e me abrira portas e janelas
para o futuro e o desconhecido. Para o passado
também e para o presente; como ignorá-lo?
De novo a vida
vinha ao meu encontro, a realidade
ficava ao alcance dos meus olhos.
Provavelmente ia recomeçar a levantar-me de noite,
atravessaria o corredor da casa descalço até à sala
só para anotar num papel os primeiros versos de um poema.

Pensava que tinha deixado de acreditar nisso
e na originalidade premente da minha inspiração.
Mas os anos que passam por nós
não nos impedem de repetir os erros antigos.
Tinha coisas importantes a dizer? Valia a pena?
Encontrara outra solução para o ritmo dos meus versos?
Tudo tem limites. E eu sou mortal
e imperfeito, deixo-me seduzir por sensações superficiais.
Mas antes de deitar-me enchia folhas de papel
com a minha caligrafia negra e apressada.
A posteridade não se poderá queixar de mim.
Quando me cansava apagava a luz e ia deitar-me.
No dia seguinte podia ler o que tinha escrito.
À luz branca da manhã tinha algum sentido a alucinação?
Depois do chá do pequeno-almoço que valiam
as frases em que tentara fixar o quotidiano?
Mistério à noite. E mistério mais ainda quando brilhava o sol.
Mas um dia, quem sabe, talvez chegasse a uma conclusão.
E entretanto o tempo ia passando, a minha existência prosseguia.
Uma semana depois já tinha outros projectos e preocupações
e acontecia-me às vezes lamentar as horas que perdera.
Mas as folhas de papel que eu fora guardando revelavam-me
que apesar de insignificante o que eu escrevera
não me era indiferente. E do oiro do tempo
que desperdiçara ficavam-me esses breves reflexos
da luz da floresta, do perfil da montanha, da humidade da tarde,
para as falhas de memória da minha vida futura.

 

Deixo a poesia à rapariga

Houve um tempo em que eu escrevia poemas.
Sentado diante da folha de papel branco
ia alinhando as palavras. Aprendi pouco a pouco
a evitar que fossem elas a conduzir-me, impus-lhes
a minha própria determinação. O maior prazer
era descobrir, como se ele estivesse escondido pela mancha verde
das árvores, o atalho inesperado. Se ele se alargava bruscamente,
a excitação era intensa, o meu sangue
começava a ferver nas veias. Mas continuava
a pesar cada palavra como se não a conhecesse
e ela quisesse trair-me.
Às vezes a poesia solicitava-me
quando eu passeava a pé pelas ruas da cidade.
Ou quando contemplava distraidamente a silhueta da rapariga
que atravessava a rua. E de outras vezes
estava apenas encostado ao vidro da janela, de mãos nos bolsos,
a aborrecer-me. Fosse como fosse, sempre tive de desconfiar
das evidências da inspiração. Sou eu quem te escreve, poema,
não tu quem me conduz pelos caminhos por onde já
te levaram antes. Dizia-me coisas assim. E a luta contra
a tentação da beleza continuava. Mas agora deixei
de preocupar-me com a poesia, depus as armas.
Quando olho, estou apenas a olhar, agora.
Quando estou triste, estou apenas irremediavelmente,
e até ver, triste. De que me serviu ter espiado
os meus sentimentos e o que penso? Aprendi a viver melhor?
Agora todas as palavras me parecem irrisórias,
estrelas que atravessam o céu tão velozmente
que nunca se sabe se alguém as viu.

Importa-me tão pouco que saibam e conheçam o que eu sinto.
A minha vida privada e aquilo que dela é visível
quando eu morrer há-de tê-los levado o tempo que passa.
Em vez de contar o que vi, vejo.
Às vezes penso que podia acrescentar alguma coisa
a tudo o que já foi dito.
Mas de que adianta lutar contra o esquecimento
ou querer distinguir-se da massa silenciosa?
Vaidade tudo, inútil tudo.
Deixo a poesia à rapariga que ainda não escreveu senão
os versos insípidos com que se tenta escapar ao tédio
da adolescência. Ela é que tem coisas a dizer,
zonas ignoradas do mistério a esclarecer.
Deixo a revolução dos versos a outros jovens:
eles é que acreditam que quem tem estilo
e imaginação tem praticamente tudo.
Um dia, caindo em si finalmente,
deixarão de querer dar nas vistas.
E hão-de descobrir,
tendo deixado de amar as palavras por si mesmas,
enfim a razão por que viveram.

 

Poeta de café

Uma vez um crítico
para diminuir a importância do que dizia
um dos meus poemas
chamou-me poeta de café.
E eu ofendi-me,
a minha juventude não suportava
não ser levada a sério.
E que dizia esse poema?
Nada de importante, apenas
que o melhor era ser indiferente
às misérias e crimes da nossa ridícula
humanidade.
Não terem compreendido a minha ironia
tinha-me revoltado.
Agora, porém, já não me importo.
E se de novo me acusassem de ser
um poeta de café,
eu havia de sorrir;
e diria que sim,
que é verdade.
Não vou ao café todos os dias,
esse tempo passou.
E quando lá me vêem,
fico apenas meia hora,
a maior parte das vezes.
Mas é no café, não nego,
que a poesia com frequência
vem ao meu encontro.
Ou eu a forço a dialogar comigo,
qual é a diferença?
Não tenho vergonha dessa futilidade,
nem de me pôr a escrever enquanto os outros
conversam e eu os observo atentamente.
Dividido entre o interior e o exterior,
deixo surgir em mim as impressões,
tento compreender os sentimentos.
A tarde avança lentamente, o café
vai-se enchendo de gente que chega.
Não conheço ninguém e prefiro assim.
Se ouvisse falarem-me longamente
as raparigas que enchem a tarde de mistério,
se tivesse de ir com elas ao cinema,
quem sabe a decepção que me esperava?
Mas estou de passagem, vim apenas
dar-me conta de como vai o mundo.
E o mundo vai bem, a beleza
envolve o ar que se respira como as árvores
lançam para o céu frio os seus ramos sem folhas.
Depois canso-me de estar sentado.
Mas ter visto que encontros cheios de surpresas
continuam à nossa espera no centro das cidades
tranquiliza-me, posso ir-me embora.
Não sei onde vive agora o crítico
que quis chamar-me à ordem antigamente.
Mas se o encontrasse dizia-lhe:
o senhor tinha razão, afinal
escrever poemas nos cafés era o meu destino
E agradecia-lhe o ter descoberto a minha vocação
antes de eu estar preparado para assumi-la.

 

Os poetas são seres doentes

Muitas vezes os poetas confundiram a poesia
com a arte de cantar. E outras vezes
procuraram dolorosamente um ritmo digno das histórias
da literatura, esses monumentos ao tédio.
A rapariga que atravessava a rua à sombra dos plátanos
com a simplicidade inquietante da sua beleza fê-los sofrer,
mas em vez de falar do segredo eterno das suas pernas
e do perfil pesado dos seus seios nus debaixo da camisa aberta
esforçaram-se por esconder a perturbação e o pressentimento da morte
no castelo de mármore barroco dos símbolos e das metáforas.
Para aquele que não sabe olhar todas as tardes são a mesma tarde
e para quem não sabe ouvir todos os sons se assemelham ao ruído.
As pessoas passavam. Homens e mulheres que não iam a lado nenhum
e no entanto concentravam o espírito cheio de perguntas
nas pedras amarelas do passeio. Rapazes e raparigas
sentavam-se nas esplanadas dos cafés. Tinham os olhos
tão limpos. Neles podia reflectir-se
o universo inteiro e observando-os de longe
adivinhava-se que as palavras com que tentamos orientar-nos
no nevoeiro da existência são todas excessivas e até erradas.
E no entanto eles ignoravam as árvores e as casas, só sabiam
olhar para si mesmos. Como se um lume oculto
os subjugasse e faziam pensar na borboleta que queima as asas
na claridade brutal da lâmpada eléctrica. A tarde avançava.
Os poetas são seres doentes e têm medo da vida. Sem fim
apagam as luzes para que o quarto fique às escuras. As coisas
ferem-nos, pesam-lhos excessivamente no espírito. E eles preferem
a espessura protectora das sombras. É tão injusto ter de viver
para além da infância e da adolescência. Mas pelas persianas de madeira
o ar e a música da rua não cessam de querer entrar. E de longe
as montanhas e os rios enviam o cheiro de arbustos, de pinheiros.
Para resistir os poetas começam a cantar. Ou enterram debaixo das palavras
a violência demasiado quotidiana, excessivamente selvagem do mundo.

 

Um pontapé no cu

À violenta luz das lâmpadas eléctricas prefiro
a claridade que escorrega do céu ao fim da tarde:
ela alonga as sombras dos plátanos sobre as pedras
do passeio; e deixa no espírito de quem passa
a nostalgia tranquilizar os sonhos de futuro.
Fernando, ao que tu chegaste. Levaram-te
para os Jerónimos como a um vulgar herói
de épocas mortas, os malandros. E à tua poesia
cada um se agarra como o musgo ao tronco da árvore.
Querem que sejas o Vasco da Gama que hoje não há,
o Camões ressuscitado para reabilitar o prestígio da nação.
Pesam tanto em cima de ti que começas a afundar-te.
País de retratos da senhora da conceição dependurados
na parede, de flores de plástico na jarra em cima da mesa.
Faz cair das nuvens o vinho que bebeste, mija-lhes
na cabeça. Nunca foste às putas? Masturbavas-te?
Amaste pouco e mal, como toda a gente.
Viveste tudo por dentro e esqueceste-te de triunfar na vida.
O teu destino foi tão banal, de certo ponto de vista,
como o dos operários que vivem a construir motores.
As tuas cartas de amor são de uma ingenuidade que faz sorrir,
de nada serve teres querido desculpar-te disso de antemão.
Mas alguém tinha alguma coisa com isso? Ninguém.
Em breve, no entanto, terás o retrato a cores na bandeira nacional,
militares sem cultura já te adoram como se tu nunca tivesses
existido. Lá de cima dá um pontapé no cu dos teus devotos.
Sai da medalha, cospe-lhos no rosto e na gravata.
O grande interesse da tua poesia era podermos lê-la em segredo
e compreender que de nada serve correr, que a vida não vale nada;
e apesar disso ensinavas-nos a duvidar com paixão.
Mas agora até os teus óculos e o bigode se transformaram
em assunto elegante para aqueles que não têm destino próprio.
E a indústria nacional exporta-te em vez do petróleo que não tem.
Portugal, país de gente que ama as coisas mortas.
Caiu a tarde. Eu penso em ti. Mas o sopro e o ritmo
que das tuas palavras se desprendiam atenuam-se,
as pilhas estafadas estão a dar o berro e em breve
já só te lerão alguns professores e outros funcionários públicos.
Mais tarde renascerás das cinzas, mas a nossa época terá passado,
e quem vai indemnizar-nos de não te termos relido?