A Quaresma em 1930

Depois do Carnaval, folgazão e atrevido, vem a Quaresma, com seu ambiente de recolhimento, oração e penitência.

Em Salgueiro do Campo notava-se perfeitamente a mudança do ambiente carnavalesco para o quaresmal. Era dito às crianças que brincar hoje, com as serpentinas «fitas» que ontem eram o seu enlevo, era pecado. Não se jogava ao pião nem à bilharda para não bater ou profanar a terra beijada pelo Senhor e regada com seu suor e sangue. Não se podiam cantar canções profanas nem tão pouco assobiar.

Em seu lugar ouvia-se aqui e ali um cântico que, pela sua letra e sobretudo pela melodia, nos convidava a um recolhimento.

Santo Cristo do Calvário
Vossa cruz é d'oliveira,
Nela morreste meu Deus
Duma morte verdadeira.

Lá em cima ao calvário
Está um craveiro na cruz
As folhinhas que lhe caem
São as chagas de Jesus.

    coro

A terra tremia
C'o peso da cruz
Salvai a minh'alma
Divino Jesus.

Assim se ia criando um clima de autêntica religiosidade onde até os mais indiferentes sentiam a mudança do ambiente.

À noite, às 6ªs-feiras, a um determinado sinal do sino pequeno, os homens reuniam-se na Igreja, para só eles fazerem a Procissão dos Passos e cantarem ladaínhas.

Saem da Igreja. À frente, três homens com opas pretas. Um leva uma cruz simples com uma toalha disposta em forma de M; dois levam lanternas. Atrás, dois homens dos mais idosos e sabedores, levam a Cartilha do Ti João Sacristão e vão entoando a Ladaínha ou o Senhor Deus Misericórdia e todos os outros respondem em coro.

Ao longo do percurso há sete locais onde tradicionalmente se celebra determinado «Passo» da Paixão do Senhor. Ao chegar a um sítio destes, a procissão pára e entoa-se a narração de cada «Passo».

1º Passo

Depois de tantos tormentos
Por nosso causa sofridos,
Põem aqui a pesada cruz
Sobre seus ombros feridos.

Com grande amor a abraça
E vai andando com ela,
Ao lugar da Justiça
Para ser pregado nela.

Sejais meu Senhor louvado
Pois que movido de amor,
Sofreis ser atormentado
Por livrar o pecador.

2º Passo

Com o grande peso da cruz
Quis Deus ser enfraquecido,
E com ele aqui caído
Jaz em terra o bom Jesus.

Procuram-no levantar
Pela corda lhe tirando,
Em se ele levantando
Parece querer expirar.

Glória seja ao padre
Glória ao Filho juntamente,
Glória ao Espírito Santo
Que de ambos é procedente.

3º Passo

Vindo aqui atormentado
O Senhor em tais tormentos,
E o seu rosto afeado
Com escarros mui nojentos.

Com a cruz às suas costas
E com peso tão penoso,
As suas faces formosas
São tornadas de um leproso.

Em tão horrenda figura
Encontra a Virgem Madre
Ao filho de Deus Padre,
Em a rua da amargura.

Com tal vista de um, e outro,
Fica a alma trespassada
Da espada mui aguda,
No Templo profetizada.

Glória seja a vós, Senhor,
Que encontrando vossa Madre
Foste ferido de dor,
Para nos dar liberdade.

4º Passo

Vendo aqui já os Judeus
Que Cristo desfalecia,
Com aquela cruz pesada
Com a qual já não podia.

Fazem com o Cireneu,
Que lha ajude a levar:
Grande desejo é o seu
De o ver nela penar.

Glória seja a vós Senhor,
Por quanto tendes sofrido,
Por livrar o pecador
Do inferno merecido.

5º Passo

Aqui neste lugar
Vão as mulheres chorando;
Diz-lhes o Senhor, virando,
Por mim não queirais chorar.

Folhas de Jerusalém
Sobre vós mesmas chorai,
E com dor suspiros dai
Por vossos filhos também.

Porque são tantos os males,
Que sobre vós hão-de vir,
Que direis: montes e vales,
Sobre vós vinde cair.

Que pois no madeiro verde
Tais golpes se estão dando,
Do seco ficai julgando
O que será feito nele.

Glória seja ao Padre,
Glória ao Filho igualmente,
Glória ao Espírito Santo,
Que de ambos é procedente.

6º Passo

Aqui nosso redentor
Chega já ensanguentado:
Tal vem o rosto sagrado,
Que em o vendo faz horror.

Comovida a mulher pia,
Quando o vê assim passar,
Lhe deu um pano mui limpo
Para nele se limpar.

E se limpando deixou
No pano sua figura,
A qual até hoje dura
Impressa como ficou.

7º Passo

Neste monte, onde estamos,
Expirou o salvador,
Morrendo por nosso amor:
O que mui mal lhe pagamos!

Este lugar consagrado
Foi com sangue de Jesus,
Que cravado em uma cruz,
Foi nele derramado.

Nosso Deus tão desejoso
De todo o mundo salvar,
Por teu resgate quis dar
O seu sangue precioso.

Pendurado em um lenho,
Grande sede padecia:
E com grande agonia
Disse: grande sede tenho.

Assim pois atormentado
Da cabeça até aos pés,
Vendo tudo acabado,
Disse: consummatum est.

Inclinando a cabeça
Para onde estava a Madre,
Deu o Espírito ao Padre
Com mui grande fortaleza.

Glória ao Padre, que mandou,
Ao Filho, que obedeceu,
Ao Espírito Santo, que o iniciou,
A tudo que padeceu.

As mulheres não acompanham estas procissões penitenciais e nocturnas. Aparecem então às janelas, alumiando com velas ou candeias, pois o petróleo não deve usar-se nas cerimónias religiosas, dizem!

Mas também as mulheres tomam parte em cerimónias religiosas durante a Quaresma: consistem na «Encomendação das Almas».

No silêncio da noite, ouve-se a voz aguda das mulheres, colocadas em local elevado, geralmente na torre da Igreja, a pedir orações pelas intenções mais queridas à alma do povo:

Bem vos peço ó meus irmãos
Um Pai-Nosso e uma Avé-Maria
Pelas almas dos que andam
Sobre as águas do mar.
Que o Nosso Senhor os leve
A porto de salvação
Seja pelo divino amor de Deus.

E ali passam os que andam em pecado mortal, os missionários, os que estão em agonia, as almas do purgatório, etc..

As pessoas, mesmo as que já estão deitadas, vão rezando pelas intenções pedidas.

No fim da «Encomendação das Almas» cantam em honra do Senhor Crucificado e de Nossa Senhora das Dores:

Ó meu Deus quem fora homem,
Que andara pelas estradas,
Eu subiria ao Calvário
Limpar as divinas chagas.

Ó meu Deus quem fora homem,
Que andara pelos caminhos,
Eu subiria ao Calvário
Tirar a c´roa de espinhos.

A Senhora chora, chora,
Que até se ouve à rua,
Tem o seu filho morto
Chegado à sepultura.

A Senhora chora, chora,
Que até se ouve ao adro,
Tem o seu filho morto
Nos braços amortalhado.

E assim se ia vivendo e santificando a Quaresma.

Iam passando os Domingos de Suzana, de Lázaro, de Ramos, até chegarmos à Semana Santa.

Quarta-Feira Santa:
Não se podiam colher couves nem se podia fiar, porque o Senhor, dizem, se escondeu num couval para fugir aos Judeus, e estes, nesse mesmo dia, teceram as cordas com que o haviam de prender.

À noite, na Igreja, como início das cerimónias religiosas, tinha lugar o Ofício das Trevas.

Quinta-Feira Santa:
À tarde tinha ligar a missa que celebra a instituição do Sacramento da Eucaristia à qual se seguia a cerimónia do lava-pés: -- doze homens, dos mais idosos, quais doze apóstolos que se sujeitavam à lavagem dos pés pelo representante de Cristo!

À noite, terminadas as cerimónias do Ofício das Trevas, seguia-se a «Procissão dos Passos», agora com as imagens próprias. Estas são de tamanho natural.

O sinal para estas cerimónias era dado pelo som cavo da matraca, pois os sinos estavam silenciosos até aparecer a Aleluia.

Em casa já os pais e avós haviam explicado tudo o que ia passar-se aos filhos e netos.

Saía a procissão da Igreja, acompanhada pela banda, levando a imagem do Senhor dos Passos. As imagens da Senhora das Dores e de S. João Evangelista encontravam-se junto à capela de S. Sebastião.

A procissão avança até à Praça. Aí tinha lugar o Sermão do Encontro.

À voz do pregador, as imagens iam-se aproximando.

Momento de grande emoção e de alta tensão religiosa que o pregador provocava e sabia aproveitar.
Terminado o sermão, a procissão continuava.

Nos locais tradicionalmente marcados, a procissão parava e cantava-se o Passo correspondente.

Com esta procissão terminavam as cerimónias de quinta-feira santa.

Sexta-Feira Santa:
Dia de grande luto. Da morte de Deus feito Homem.

Na parte da manhã havia o Ofício das Trevas.

De tarde, dado o sinal com a matraca, toda a gente, de luto carregado, se apressava a ir para a Igreja.

A Capela-Mor estava fechada, com um pano preto.

À hora marcada, o pregador, de capa preta, subia ao púlpito. A certa altura do sermão, mandava correr o pano, e, à vista de todos, aparecia o Senhor crucificado, com sua mãe e S. João ao Lado.

O cenário era feito com rama de pinheiro. Queimava-se pólvora para assemelhar relâmpagos e um bombo produzia um som longínquo a lembrar a trovoada.

Ao fundo da Igreja, dois sacerdotes, vestidos de branco e escada ao ombro, tendo uma mulher no meio que, ao contrário das outras pessoas, vestia de gala.

À palavra do pregador, essa mulher, qual Maria Madalena, avançava pela Igreja, lançava fora todos os ornamentos, e ia lançar-se aos pés da cruz, que abraçava.

Avançavam também os dois sacerdotes que, à voz do mesmo pregador, iam despregando da cruz a imagem do Senhor. Maria Madalena aceitava os cravos.

Terminado o descimento da cruz e o Senhor deposto no esquife, seguia-se a Procissão do Enterro.

O povo seguia silencioso empunhando velas ou archotes.

A dada altura, a procissão parava e uma rapariga subia a um banco e cantava:

Ó vós todos que passais
Atendei e vede
Se há dor semelhante à minha!

Desenrolava então um pano em que estava pintado o rosto ensanguentado do Senhor e mostrava-o em todas as direcções.

Representava esta rapariga a Verónica.

E a procissão continuava.

Chegada à Igreja, era a cerimónia da sepultação do Senhor.

O pregador subia de novo ao púlpito.

Na Capela-Mor um grande arcaz servia de túmulo.

Ao mando do pregador, o Senhor era colocado no túmulo que era fechado com grande estrondo.

Todos se retiravam meditando no que o Senhor sofreu para nos salvar.

Sábado Santo:
Amanhecia o Sábado Santo e a alegria da Ressurreição que se aproximava começava a despontar.

Os rapazes, a postos para celebrar a Aleluia, mal continham o silêncio que era imposto ainda pela circunstância do momento.

Ao bater das 10 horas, as vestes roxas desciam dos altares, os sinos repicavam e o rapazio percorria as ruas tocando campainhas e chocalhos.

Na Igreja celebrava-se a missa da Ressurreição.